segunda-feira, 5 de abril de 2010

Ecopedagogia e Cidadania


(Eco)Pedagogia da esperança

Flávio Boleiz Júnior(1)



A atualidade tem-se mostrado caótica e, conseqüentemente, incompreensível para a maioria das pessoas. A globalização capitalista vem acentuando a dominação, exploração e manipulação social por parte dos poderosos. A xenofobia, explícita em algumas regiões do Globo e dissimulada em outras aparentemente mais democráticas, destaca-se como uma grande chaga social. O desequilíbrio econômico generalizado, gerado pelas especulações de investidores que buscam enriquecer a qualquer custo, continua a fomentar a opressão econômica de, pelo menos, dois terços da população do nosso planeta, acentuando as distâncias entre ricos e pobres, no que Gaudêncio Frigoto (1995) nomina Capitalismo Real. Guerras localizadas levam sofrimento e crueldade a vários pontos de todos os continentes, enquanto que as reações terroristas geram medo e insegurança por toda parte. O predomínio generalizado do ideal capitalista consumista gera, descontroladamente, a destruição progressiva dos bens naturais. As relações entre as pessoas e entre as nações têm gerado exclusão social das minorias, desprezo às suas culturas e aos seus ideais, necessidades e dignidade.

Tantos problemas presentes no mundo contemporâneo, no mais das vezes, impedem vislumbrar, sequer, uma ponta de luz no fim do túnel sem causar a sensação de que aquilo que se vê é, fatidicamente, um trem vindo na contramão.

Toda essa conjuntura real dificulta, em muito, a assunção de uma postura de esperança, de confiança num devir de paz e eqüidade social. O pensamento neoliberal tem conseguido, a cada dia, incutir em nossas mentalidades a desesperança no formato de um programa que se prescreve no cotidiano de nossas relações sociais, e Paulo Freire nos ensina que como programa, a desesperança nos imobiliza e nos faz sucumbir no fatalismo onde não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate recriador do mundo. (...) Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo. Mas, prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, à pura cientificidade, é frívola ilusão. (FREIRE, 1992, p. 10)

Tal alerta nos chama à reflexão com relação a nossas escolhas diante da profissão docente. Se acreditamos na importância do processo educativo para a transformação do mundo, não podemos admitir uma postura desesperançosa, pessimista ou fatalista.

Assumir-se como educador implica compromisso para consigo mesmo e para com os educandos. Compromisso realista, não ingênuo. O educador tem que ser uma pessoa que ame a sua condição humana e, por conseguinte, as novas gerações e, por extensão, diríamos, toda a humanidade. Por isso Hannah Arendt afirma que “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele e, com tal gesto, salvá-lo da ruína que seria inevitável não fosse a renovação e a vinda dos novos e dos jovens.” (ARENDT, 1997, p. 229)

Diante da conjuntura social contemporânea, como se exerce a função de educadores-sujeitos-amantes-da-condição-humana? Como devem ser os nossos fazeres se desejamos estar engajados na busca de uma transformação social que garanta ao presente, às novas gerações, e a toda humanidade, melhores condições de vida, de igualdade, de justiça, de inclusão e inserção social; em uma palavra, um outro mundo mais humano?

Esta não é uma reflexão nova — “moderna” ou muito menos “pós-moderna”. Trata-se de questões pertinentes a todos os tempos — já presentes nas entrelinhas dos diálogos de Sócrates, retratados por Platão, há mais de dois milênios. São questionamentos latentes em nosso momento presente, incubados em nossas consciências desde tempos imemoráveis. Talvez jamais tenha havido, em toda nossa história, uma necessidade tão grande de se encontrar respostas como na atualidade, que é fruto de tamanho domínio de opressores — que Paulo Freire nos ensinou que são aqueles que nos impedem de realizarmos nossa vocação de ser mais(2) — que vivemos sob a égide de valores de vida antropofágicos que a ideologia dominante vem disseminando de maneira hegemônica; pois as relações de poder, tal como se nos vêm apresentando, legitimam a expressão latina que sentencia nossa desumanidade: "hominus lupus homini"(3). O ser humano vem se apresentando a seu semelhante como o mais temível e terrível de todos os predadores da natureza e de sua própria espécie. Destrói a natureza, destrói as relações interpessoais, destrói a cultura das minorias, destrói, enfim, a si mesmo.

Parece lógico que necessitamos buscar formas de reverter essa situação, de inverter esses valores, de construirmos uma re-humanização da espécie humana. Levando em conta nossa condição de docentes:
  • como podemos contribuir para a valorização de paradigmas, atitudes e fazeres voltados para o estabelecimento de uma sustentabilidade mundial?
  • Como ensinar a reverência à Terra e a cada um dos entes que formam sua grande comunidade de vida?
  • Como trabalhar e ensinar uma outra maneira de relacionar-se, pautada no equilíbrio, na inserção social, na paz, no respeito indistinto e na liberdade para todos e para o todo?

Incomodados por esses pensamentos, nos vemos instados a refletir acerca de nossas próprias atitudes, de nossas práticas no cotidiano familiar, nos nossos fazeres profissionais e na nossa concepção do conceito tão desgastado — e ao mesmo tempo tão atual e necessário — que é o de cidadania. Faz parte de nossas atribuições de educadores, ensinar cidadania. Mas, nos perguntamos, que cidadania? Uma cidadania regionalista ou nacionalista? Uma cidadania que se traduza por obediência, por integração ao sistema, ao status quo? Ou nosso compromisso se estabelece com uma cidadania envolvida com o todo, com cada ser humano vivente e por viver em nosso Planeta: algo que possamos afirmar como, de fato, uma cidadania planetária? Trata-se de decidirmos se desejamos assumir uma postura de compromisso para com todos os homens e mulheres, independentemente do lugar de onde vieram e de como compreendam ser melhor viver. Trata-se, enfim, novamente, de assumirmos nosso amor pela condição de humanidade.

A Carta da Ecopedagogia4 (UNESCO, 1999) têm-se referido à Terra como um organismo vivo, que age, reage e interage em consonância com estímulos que recebe de todo seu entorno universal — estímulos que vêm de fora — e outros que recebe de sua própria superfície, como conseqüência das ações levadas a cabo por seus habitantes. Se não há muito que fazer quanto aos estímulos externos, grande é a quantidade de ações que se pode implementar, desde já, no que diz respeito aos estímulos que nós lhe temos aplicado.

Já é senso comum que, ao falar-se em sustentabilidade e preservação ambiental, remeta-se o pensamento às ações que os governos, as empresas, as organizações não governamentais; podem e devem implementar como formas de combate à poluição, à destruição e degradação do mundo. De fato essas ações são importantes e necessárias, mas são muito pouco se desejamos construir um mundo diferente — como diz o lema do Fórum Social Mundial: um outro mundo.

Uma tomada consciente de postura diante da vida deve permear todas as ações de nosso dia-a-dia, desde as mais simples até as mais complexas. Ações que vão do banho mais rápido como forma de preservação de água e energia, até o engajamento em projetos de luta pela igualdade e a inclusão social das minorias de nossa sociedade próxima ou global. Engajamento que se não ocorre, esvazia a pressão para com a execução de ações por parte dos governos, empresas, organizações não governamentais; por deixarem de exprimir prioridade dentre os interesses da sociedade civil organizada.

A Carta da Ecopedagogia nos auxilia na reflexão a respeito de nossos fazeres, de nosso agir pessoal cotidiano em todos os lugares onde se desenrola nossa vida, ao alertar-nos para o fato de que as experiências cotidianas aparentemente insignificantes, como uma corrente de ar, um sopro de respiração, a água da manhã na face, fundamentam as relações consigo mesmo e com o mundo. A tomada de consciência dessa realidade é profundamente formadora. O meio ambiente forma tanto quanto ele é formado ou deformado. Precisamos de uma ecoformação para recuperarmos a consciência dessas experiências cotidianas. Na ânsia de dominar o mundo, elas correm o risco de desaparecer do nosso campo de consciência, se a relação que nos liga a ele for apenas uma relação de uso. (UNESCO, 1999, item 8)

Para o educador e a educadora a formação de cidadãos planetários deveria se constituir numa preocupação meio que naturalizada, a partir de sua conscientização. Em cada atividade da sala de aula ou de qualquer espaço educativo, se o que se deseja lograr é um devir harmonioso para toda a humanidade, o educador ou educadora não pode agir em contradição com seu respeito para com toda a humanidade e sua certeza na possibilidade de transformação do mundo. É preciso que cada educador ou educadora ofereça uma formação a seus alunos e alunas que transcenda a teoria — seu discurso do professor — e se materialize nos seus próprios exemplos de vida diante dos educandos.

Historicamente o modo de produção hegemônico vem doutrinando os homens de modo a buscarem defender os bens da família e da pátria como virtude primordial no exercício da cidadania. Uma visão planetária, por parte do educador ou educadora, deveria apresentar aos educandos e educandas a Terra como pátria e a humanidade toda como grande família global com interesses comuns. Uma família formada por membros distantes, mas igualmente importantes, apesar das diferenças e peculiaridades de cada povo, de cada comunidade, da enorme diversidade enriquece nossa condição humana e, em liberdade, nos oferece infindáveis possibilidades diante de nossa natural vocação de ser mais...

Se o trabalho do educador estiver pautado na compreensão desse interesse universal, sem perder de vista o meio local onde está inserido, já estar-se-á iniciando o trabalho de libertação dos oprimidos do mundo. Trabalho fundamentado naquela Pedagogia comprometida com a esperança de um mundo melhor. Trabalho afinado com o que Paulo Freire chama de “Inédito Viável” (FREIRE, 1992, p. 5). Trabalho que se traduz numa Pedagogia preocupada com o equilíbrio do homem no ambiente onde vive, com seu semelhante, com a Terra — a casa de todos nós — e todas as espécies que a habitam; uma Pedagogia comprometida com o que Leonardo Boff (1995) chama de “bem estar sóciocósmico”. Uma Pedagogia da Sustentabilidade ou, no dizer de Gutiérrez e Prado, uma Ecopedagogia (GUTIÉRREZ e PRADO, 1999).

Filosoficamente comprometida com todas as causas sociais que buscam a igualdade eeqüidade humanas no planeta como um todo inteligente, a Ecopedagogia oferece ao homem a possibilidade de uma mudança radical de mentalidade, em relação à qualidade de vida e ao meio ambiente.

Na Carta da Ecopedagogia, lemos:

A planetaridade deve levar-nos a sentir e viver nossa cotidianidade em conexão com o universo e em relação harmônica consigo, com os outros seres do planeta e com a natureza, considerando seus elementos e dinâmica. Trata-se de uma opção de vida por uma relação saudável e equilibrada com o contexto, consigo mesmo, com os outros, com o ambiente mais próximo e com os demais ambientes. (UNESCO, 1999, item 4)

Mais que simplesmente levantar questões sobre o grande tema da sustentabilidade, precisamos levar a cabo reflexões que norteiem, didática e pedagogicamente, o trabalho de todos os educadores e educadoras e de todos os homens e mulheres identificados com esses ideais, em busca da "formação de cidadãos com consciência local e planetária que valorizem a autodeterminação dos povos e a soberania das nações". (UNESCO, 1999, item 6)

Se a escola é, legitimamente, a “instituição social responsável pela continuidade da socialização das novas gerações e pela produção e reprodução dos saberes necessários a esse processo socializador” (MADEIRA, 1999, p.55), em seu seio devem-se sedimentar as bases de um conhecimento comprometido com a qualidade de vida dos sujeitos sociais, pautadas na convivência harmoniosa de toda a diversidade que compõe aquilo a que estamos nos referindo como cidadania planetária.

O conceito de cidadania em si, deriva de outro conceito importante para sua própria apreensão, que é o de “civitas” — em latim, cidade — que no mundo romano corresponde à polis, Cidade-Estado dos gregos. O conceito de cidadania, pois, encontra sua idéia-força no que diz respeito à liberdade — real ou ilusória — de que dispunha o homem livre, habitante da cidade, em comparação com o escravo. Pensando a relação entre cidadania e cidade (cidade-estado), os gregos antigos tinham muito clara a importância de uma convivência coletiva, pautada na harmonia como garantia de sua própria sobrevivência. Sabiam a polis como lugar onde sua liberdade e seus direitos eram reconhecidos e respeitados. Os deveres e direitos eram amplamente discutidos e o senso de democracia pairava acima de todas as questões individuais.

O ideal a que aludimos ao falarmos de uma cidadania planetária vai ao encontro dessa vivência plena da condição de sujeitos sociais. A civitas-polis, aqui, é o planeta como um todo — que os gregos chamavam de “Gaia” grande deusa criadora e mantenedora da vida, anterior, mesmo, a Zeus, o deus dos deuses. A aplicação universalista que desejamos atribuir a esse conceito de cidadania planetária, busca a igualdade entre todos os homens e não aceita que apenas alguns sejam cidadãos. Todos são naturais da grande civitas/polis Terra, portanto filhos da mesma mãe Gaia constituindo a grande família humana, e são inaceitáveis a escravidão e a subserviência em qualquer circunstância, ainda que o pensamento hegemônico, tantas vezes, nos tente reduzir a identidades que nos fazem viver como se fossemos, ainda, escravos ou habitantes das glebas feudais — servos sem direitos de cidadania.

Não é objetivo da Ecopedagogia massificar e mundializar uma determinada cultura, um determinado molde onde todos devam se encaixar para viver. Antes pretende oferecer subsídios para ações educativas que respeitem a cultura local ao mesmo tempo em que não excluam, enquanto valor, a cultura de todos aqueles que sejam diferentes. Subsídios que valorizem o respeito, a tolerância e a harmonia com o diverso. A sustentabilidade da vida no planeta clama por atitudes dessa monta: atitudes militantes na defesa da inclusão social de todos e todas e nas lutas contra a exclusão.

Trabalhando conscientes de que é possível semear, na atividade educativa, a construção de uma nova ordem mundial, aprendendo e apreendendo uma visão planetária de vida e de mundo, assumindo para a própria vida uma filosofia holística e mundializadora da cidadania; estaremos implementando uma base ética no desempenho das funções docentes que se dêem em consonância com a Ecopedagogia.

A boa-vontade, como condição de humanidade diante da lida com os conflitos, a vontade de prosseguir vivendo harmonicamente, apesar de toda e qualquer diferença, buscando a convergência dos interesses de todos, é o caminho a trilhar que nos enche, hoje e sempre, de esperança. Por isso uma Ecopedagogia é, acima de tudo, uma (Eco)Pedagogia da Esperança.

Referências Bibliográficas

ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997.

BOFF, Leonardo. Ecologia – Grito da Terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança – Um reencontro com a Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 32. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2002.

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 1995.

GUTIÉRREZ, Francisco e PRADO, Cruz., Ecopedagogia e Cidadania Planetária. São

Paulo: Cortez, 1999

UNESCO, Carta da Ecopedagogia, 1999, http://www.paulofreire.org.

1 Mestrando em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, Professor Universitário e Educador do Movimento pela Ecopedagogia.

2 Paulo Freire nos diz: “A desumanização, que não se verifica apenas no que têm sua humanidade roubada, mas também, ainda que de forma diferente, nos que a roubam, é distorção da vocação do ser mais.” (FREIRE, 2002, p. 30)

3 O homem é o lobo do homem.

4 A “Carta da Ecopedagogia” também é chamada de “Carta da Terra na Perspectiva da Educação”. Foi escrita coletivamente pelos participantes do Primeiro Encontro Internacional “A Carta da Terra na Perspectiva da Educação”, em São Paulo – SP, Brasil, de 23 a 26 de agosto de 1999; organizado pelo Instituto Paulo Freire com apoio do Conselho da Terra e da UNESCO-Brasil.

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